sábado, 3 de maio de 2008

(1) Corrente ampliada

Com Mário Faustino na praia de Copacabana, em 1955


Num bar de esquina da Barata Ribeiro com a Siqueira Campos, eu tomava um cafezinho antes de ir para o Ministério da Guerra, onde o expediente da Diretoria de Armamento começava às 11 horas. De Juiz de Fora à Vila Militar, da Vila ao Ministério, agora podia dormir tarde, acordar sem o alarde do despertador.

Foi nesse bar que encontrei Walter Wendhausen, catarinense, meu conhecido das noites de Copacabana. Apresentou-me seu companheiro de apartamento, Luís Canabrava, contista premiado em São Paulo com o livro Sangue de Rosaura. Morava no 418 da Barata, eu no 435 do outro lado da rua. Bastaria o fato de trabalharem em publicidade (na Sears, depois na Mesbla) para nos unir. Meu fascínio pela propaganda vinha de longe, quando mandei o layout de um anúncio para uma agência de Porto Alegre e nunca soube o resultado. Mas havia outros elos: ambos desenhistas e pintores. Walter conhecedor da música popular, guardando seus preciosos discos numa velha geladeira pintada de verde-oliva.

No 418 morava também o contista Renard Perez, irmão do gravador Rossini Perez, e o ator Jason Cesar. No apartamento junto ao meu, o jornalista Antônio Pinto de Medeiros, conhecido de Natal, redator de O Jornal. Sálvio de Oliveira, em frente ao meu prédio, completava este simpático quadro de vizinhança, onde não faltavam gostosas confabulações sobre arte, literatura e teatro, algumas vezes acompanhadas pelo brilho verbal de Jayme Maurício ou a irreverência de Sansão Castello Branco.

Sansão aparecia sempre de improviso, sandálias nordestinas, uma pasta com desenhos, projetos de decoração, o caderno de capa preta com os telefones “de todo o Rio de Janeiro”. De calça cinza, larga camisa preta, levou-me um dia a um velho edifício da rua Barão de Ipanema:

- Eneida, este é o Laus, oficial do exército, também contista.

Eneida, outra pessoa-chave de minha vida, uma das mais importantes como ser humano autêntico. De uma vivacidade sem limites, tinha seu caderno com os telefones também “de todo o Rio”. Jornalistas, críticos de arte, compositores, cantores, conhecia a todos, por todos conhecida como cronista do Diário de Notícias, responsável pelo Baile do Pierrots, lançadora das tardes de autógrafos na Livraria São José de Carlos Ribeiro.

Numa livraria ou galeria de arte, na entrada dos teatros ou no bar Vermelhinho, chegava com o ruído das pulseiras e colares de prata, os ativos olhos verdes saltando de uma pessoa a outra, beijos, abraços, um dito gostoso, uma palavra de humor. Mulher excepcional, amiga incondicional de seus amigos, defendia-os mesmo no erro:

- Sei que você não está certo, seu porcaria, mas afinal somos ou não somos amigos?

Impossível relacionar todas as pessoas conhecidas através de Eneida. Algumas, pura apresentação; outras, convivência rápida, sem consequência; mas também muitas de sólida ligação. Na literatura, Jorge Amado, James Amado, Aníbal Machado, José Condé, Valdemar Cavalcanti, o coronel M. Cavalcanti Proença, além de Antônio Bandeira, Ana Letícia, Rossini Perez, nas artes plásticas. Figura obrigatória nos Bailes do Pierrots, Elizeth Cardoso cantava sem se fazer de rogada nos grandes almoços de sábado, em casa de escritores e artistas.

Jayme Maurício, como bom gaúcho, aparecia no 435 com uma garrafa de vinho. Um dia, em 1954, trouxe Mário Faustino, o poeta, o maior poeta com quem convivi, poeta desde o amanhecer até a noite. Antes de dormir, para o descobrimento de novas palavras, ia avançando sua busca nas páginas do Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Conversação instigante, agressiva, fulgurante, não concedia aos outros o que não concedia a si próprio: comodismo e improviso na criação artística.

Quando Mário voltou de Belém do Pará, onde morava, para trabalhar na Fundação Getúlio Vargas, ficou hospedado dois meses comigo. Esse período permitiu-me conhecer e avaliar sua inteligência, a cultura profunda. A presença do poeta trazia uma grande carga de emulação. Insistia para que se trabalhasse, lia sem cessar e, de vez em quando, interrompia a leitura para mostrar uma descoberta, fosse um poema inteiro, um verso ou uma simples palavra.

Tudo isso reforçou em mim uma convicção posta em letra de forma numa entrevista que concedi a um jornal de Belém, onde estive com Eneida e Renard Perez em 1956:

- Escrever pra mim, corresponde a um necessidade interior que posso, quando muito, adiar; impedir é impossível.

Mas, em 1956, ia perder o amigo (Sansão) que me chegou sob a forma envolvente e mágica de um balé.

(Capítulo I, texto 5, do livro De-Como-Ser – Memórias de Harry Laus, 1978)

Um comentário:

CARMEN FOSSARI disse...

EGEU

FICO A IMAGINAR RUTH REPLETA DE ORGULHO PELA MANEIRA CARINHOSA E PROFUNDA COM QUE TENS CUIDADO DA OBRA DO HARRY E CLARO TAMBÉM A DELA.
COMO SABES ADAPTEI OS TEXTOS DE HARRY PARA TEATRO E DIRIGI DURANTE DEZ ANOS.
LEVEI UM DELES O SANTO MÁGICO AO CHILE, TEMPORADAS DE MEMORIAS DE UMA CACHORRA SEM PRECONCEITOS, A COROA,ZENÃO DAS CHAGAS.. OS CONTOS,OUTROS.

E O FIZ POR SABER O QUANTO AS PERSONAGENS DE HARRY SÃO HUMANAS E BELAS EM SUAS MAIS PROFUNDAS CONTRADIÇÕES E AO MAIS PROFUNDO DE SEUS SONHOS.
AINDA ESTA SEMANA , ENCONTREI SALIM MIGUEL NA UFSC E CONVERSAMOS SOBRE A INCRÍVEL LITERATURA DE HARRY. CONHEÇO E VIVENCIEI AS PERSOANGENS AO ADAPTAR A LITERATURA PARA TEXTOS TEATRAIS .
O BRASIL AINDA VAI RECONHECER-SE EM HARRY, E ACREDITO QUE A PARTIR DAS TRADUÇÕES FRANCESAS TAMBÉM DESDE A EUROPA TODOS OS CONTINENTES

ABRAÇO
Carmen

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