terça-feira, 14 de maio de 2013

Harry Laus escreve do Nordeste em 1947

Publicada entre 1946 e 1948, pelo contista Dalton Trevisan (nascido em Colombo, região da grande Curitiba, PR, em 1925), Joaquim foi a mais importante revista jovem brasileira de todos os tempos, pois aliava arte e cultura, dando às suas páginas uma leveza gráfica ímpar. Na cola dela, surgiram inúmeros veículos jovens por todo o Brasil, pois aquele era um momento de entrada, no campo literário, de uma vasta população de produtores culturais, principalmente os das províncias – cujas cidades os moços tentavam habitar modernamente, rompendo com os passadismos.

Distribuída em praticamente todos os estados, Joaquim rapidamente se tornou um sucesso nacional, recebendo colaboração de todos os cantos. Somente no número 11, em junho de 1947, o catarinense Harry Laus começa a publicar nela uma pequena série de cartas do nordeste. Neste ponto da história da revista, ela já era mais brasileira do que curitibana e a presença de Harry Laus reforça o ideário desse projeto coletivo.

Laus escreve cartas num estilo altamente palatável, sem nenhuma pose professoral, bem dentro da gramática descontraída da revista. Há um tom ficcional nessas cartas, dirigidas não ao editor, mas ao personagem Joaquim, tomado como uma pessoa de carne e osso.

O catarinense busca não as belezas turísticas de Natal, mas a cidade viva, sua linguagem e as histórias simples. Há, nas quatro cartas, um carinho pelas pessoas comuns, percebidas como fonte artística. Este mesmo sentimento de amor pela periferia, um amor moderno, vai marcar toda a produção contística de Trevisan e a atuação da Joaquim. Harry Laus se deixa encantar pelos hábitos nordestinos, relatando-os com muita afetividade: “Interessante foi a garotada na estação vendendo água para beber – olha a água fria! – a duzentão o copo” (n.11, p.18). Tudo é descoberta para esse habitante do sul que, como toda a sua geração, busca ler, pela língua da experiência, os outros brasis.
Tal interesse pelo país fica ainda mais evidente na segunda carta (n. 12, p. 14), quando ele conta os encontros com Câmara Cascudo, um dos nomes centrais de nosso nacionalismo modernista. É esta pátria profunda que o escritor catarinense desvela para Joaquim, fascinado pelo sabor de suas expressões e por sua culinária.

Deixando Natal, de trem, ele chega a Recife, atrás do mesmo contato íntimo com a cidade. Depois de compartilhar suas descobertas, abandona a escrita da carta para dar prosseguimento à sua viagem amorosa pela região: “Adeus. Antes de ir embora ainda preciso descobrir para que lado corre o rio: quando penso que é para um, a maré empurra para outro” (n.14, p.18). Nestas duas forças antípodas, vislumbradas na luta entre o rio e a maré, está localizada a tensão que vai marcar a passagem do escritor pelo nordeste. Na carta seguinte, última colaboração sua na revista, ele sofre o desejo de retorno: “Não quero mais ver as praias e esta lua extravagante daqui, nem ouvir o doloroso lamento do animal mais contemplativo deste mundo, o jumento. Preciso andar debaixo do céu daí, ver as florestas daí, dormir com acolchoados de penas, sentir frio e falar saindo fumaça da boca” (n.17, p.17). E assim se fecha o ciclo que marcou os daquela geração. Eles querem largar a cidade, descobrir o Brasil e o mundo, para poder voltar e fundar uma nova cidade natal. É o que poderíamos chamar de ética do filho pródigo, um movimento típico de culturas novas, em processo de afirmação. Conhecemo-nos em contraste com outras culturas, importando coisas mas também ressaltando algumas características próprias.

Se Harry Laus se entusiasma com as cidades e os tradutores de seu diferencial linguístico, geográfico e humano, ele não perdoa a tacanhez da arte provinciana e faz uma crítica irônica a um espetáculo encenado no Teatro Carlos Gomes, em Natal – n. 15, p.6. Era o contato com o homem nacional periférico que lhe interessava, porque os modelos técnicos ele os buscava nas altas literaturas.
Tal como confessa à Joaquim (n.13, p.18), num depoimento que trata de sua opção pelo conto e de suas dúvidas e certezas. Laus valoriza o artesanato na construção do conto, o trabalho com a linguagem, apontando como mestres contemporâneos: Joyce, Gide, Virgínia Woolf, Proust e Sartre – e não é mera coincidência o fato de todos esses autores terem sido publicados nas páginas da Joaquim – uma revista que condensou o espírito de uma época de abertura para mundo.

(Publicado no Jornal "Ô Catarina!" de 1 de maio de 2002)