quinta-feira, 1 de maio de 2008

Grandeza sem disfarce / Grandeur sans fard

Com a saída de dois livros de novelas, Edições José Corti inicia a publicação das obras completas de Harry Laus, escritor brasileiro morto em 1992. Duas primeiras faces nos são reveladas. Elas dizem muito sobre a originalidade e variedade de um trabalho que, como escreveu Claire Cayron, sua tradutora, "traz a marca do nomadismo".

Harry Laus percorreu várias regiões do Brasil e escreveu seus textos "por toda parte e não importa onde". Militar até 1964, depois crítico de arte, diretor de museus, sua obra parece construída à imagem desta vida errante. Laus excede na descrição de lugares sem prender-se. Não importa onde, se um porto, uma vila, uma rua, por vezes uma simples casa. O gênio do escritor consiste em transformar este "não importa onde" em "por toda parte". Ele lhe insufla a dimensão do universal.

Paradoxalmente, o nomadismo dá a Laus o poder de tratar justamente da imobilidade. Portanto, é este o tema central aqui. O escritor brasileiro mistura centenas de lugares para se inscrever como observador perfeito duma realidade à escala humana a mais reduzida. Nada conta aqui, a não ser os homens e as mulheres que ele vá colocar no centro da cena. Harry Laus fala com conhecimento de causa, e a imobilidade questionada traz o peso da fatalidade.

Apesar da diversidade de suas manifestações (Claire Cayron anuncia "trabalhos inidentificáveis", um romance, uma autobiografia e um diário íntimo) o universo de Laus se beneficia de uma coerência à toda prova. A força desta obra reside numa multidão de formas para uma só voz.

Sentinela do Nada agrupa três textos bastante longos, nos quais o escritor estabelece seu décor com minúcias. E se ele toma seu tempo para as distanciar do cerne da novela é para melhor estreitar o entusiasmo em torno dos personagens, concentrar a atenção sobre suas condições. O Santo Mágico começa assim: "A ponta seca de um compasso cravada no ponto onde fica situada a casa de Altair, na carta topográfica de Porto Belo; a abertura do compasso num ângulo correspondente a duzentos metros de raio; o grafite traçando um círculo. É esta a área insignificante por onde se deslocam os personagens desta história". Laus delimita cuidadosamente, limpa seu campo de manobras. Uma vez estabelecido o cenário, ele traz suas personagens. Nenhuma ultrapassará os limites impostos à partida.

Qualquer que seja a forma utilizada pelo escritor, o cenário tem sempre a mesma tinta. Sua palavra é sombria, quase lúgubre. O olhar que ele pousa sobre o mundo não é no entanto pessimista. Laus mostra sem jamais demonstrar. Ele não julga, ele faz parte.

Assim, para revelar a loucura de Zenão das Chagas o anti-herói do segundo texto de "Sentinela do Nada", lhe é suficiente descrever os gestos de Zenão que acumula relógios que compra às dezenas, no propósito de parar o tempo. Zenão sente-se investido de uma missão que salvará o planeta. Laus é hábil para descrever o movimento, captar a significação do menor gesto: "Há manhãs em que se acorda com tais reservas de energia que dar corda no relógio e olhar a paisagem pela janela, descer todos os degraus da escada e passar o dia inteiro no trabalho exaustivo do escritório não são atividades suficientes para esgotá-las. Volta para casa, sobe os degraus de dois em dois e, ofegante, abre a porta. Dentro de poucos minutos a respiração se normaliza e as forças retornam-lhe às pontas dos dedos. Faz ginástica, sente-se o atleta que nunca foi, o suor molha seu corpo". Laus presta contas, fielmente. E o machado cai-lhe das mãos sobre Zenão das Chagas.

Os leitores de Bis evoluirão no mesmo universo, mesmo que leiam estas vinte novelas da forma mais convencional, empreenderão um outro caminho. A obscuridade, a pobreza, o despojamento, estes elementos retornam incansavelmente. As personagens são jurados no meio do impasse. As cenas de luto são abundantes, por exemplo. Vários enterros cadenciam o centro das novelas. A cada momento há ocasião para reuniões no silêncio, e para as personagens, a triste constatação de um acidente. A cena é vencida com o mais perfeito desfecho. A Coroa é uma subscrição organizada a fim de comprar flores para um defunto. Concentra-se sobre a figura da ausência. Réquiem evoca o transporte de um cadáver em táxi para respeitar a última vontade da defunta. "Olhando o perfil desenhado sob o lençol, Inácia compreendeu verdadeiramente a grandeza da morte. Ali jazia o estado definitivo - que não se deseja, mas se prepara, por toda a vida".

Quando não evoca a morte, Laus se apega aos estragos do tempo. Jandira apresenta uma estrutura despojada e uma ação reduzida ao mínimo. Uma jovem serve a uma velha senhor, presa a uma cadeira de rodas, que não cessa de martirizá-la com a palavra "aquilo". A jovem descobrirá no fim o exato significado daquela estranha palavra.

Harry Laus evoca igualmente as casernas. Sala de espera de um enquadramento masculino, onde se pode observar grandes fraquezas. Assim Laus alcança a perfeição em O Documento Secreto (Le Document Secret), o mecanismo da delação. O major Pitanga, que por interesse pessoal denuncia um oficial, perde sua segurança quando o coronel o indica para conduzir o inquérito. "Pitanga agitou-se na poltrona e levou as mãos à face para descobri-la totalmente desfigurada, sem óculos, os dois pontos de sempre arredondados na dimensão exagerada dos botões do seu capote".

O estilo de Laus não se obstrui jamais. Ele vai direto ao alvo: "Daquela tarde em diante, Rosália não mais veria sua gola azul agitada pelo vento". Harry Laus põe o homem a nu e tenta compreender seus comportamentos, nos íntimos detalhes. Ele pousa o pincel sobre a tela e registra o esencial.

Universalidade, atemporalité, está tudo lá para fazer uma grande obra. Esperamos com impaciência a seqüência deste trabalho de tradução que deverá estender-se até 2004.

Artigo de Benoît Broyart, publicado no Matricule des Anges
Tradução de Ruth Laus, irmã de Harry.

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