Há exatos 20 anos e no mesmo dia, as artes visuais e a literatura perderam dois importantes entusiastas catarinenses.
Algumas pessoas não morrem. Depois do luto, elas aparecem em nova corporalidade, no legado de um corpo de ideias nascido de suas escritas, obras, pensamento, algo inquantificável, não visível. Tangentes, no atravessamento de décadas, seus acervos continuam vibrantes, se não pela força de ações físicas e intelectuais pela falta que representam no universo em que atuaram como protagonistas. O crítico de arte e escritor Harry Laus e o artista Luiz Henrique Schwanke estão na história cultural de Santa Catarina e do Brasil, como homens de ideias inovadoras que transformaram caminhos e existências.
A morte se mostra ainda mais provocadora quando, por forças desconhecidas, impõe duas perdas a um mesmo momento, como ocorreu há 20 anos com Laus e Schwanke. O dia 27 de maio de 1992 é lembrado, por alguns, como uma tragédia cultural. O fim dessas vidas interrompeu trajetórias de absoluta dedicação. “Tudo se perde quando Laus morre, porque ele dá materialidade ao circuito, estimula os artistas, oferece uma produção teórica, um corpo de referências, instrumentaliza e organiza espaços com ferramentas adequadas”, diz o artista Fernando Lindote. Na linha do tempo da história da arte, a data equivale a uma fratura exposta.
Inseridos no sistema de arte, um conjunto de relações, processos e mediações institucionais entre artistas, galerias, museus, fundações, entidades, colecionadores, gestores públicos, historiadores, estudiosos, críticos, curadores e o público, os dois atuaram nos anos 1970 e 80. Bem informados sobre o que ocorria no mundo, cada um a seu modo, lutou pela constituição, organização e difusão do patrimônio simbólico de Santa Catarina. Interlocutores no campo das reflexões estéticas, encontraram um no outro a possibilidade de diálogo e crescimento. Laus e Schwanke obrigam a pensar os desafios estéticos destas décadas, momento de modernização do sistema no Estado. Cheio de inquietudes, Laus morou em 43 cidades antes de 1976, quando retornou ao Estado como um dos críticos de arte mais respeitados no Brasil. Escritor e jornalista, tinha disposição para um trabalho contínuo que buscava a modernidade e a profissionalização. Morou em Joinville, Porto Belo, Florianópolis, não tinha um paradeiro. Dirigiu o Museu de Arte de Joinville, entre 1980 e 82, e o Museu de Arte de Santa Catarina, entre 1985 e 87, e 1989 até a sua morte.
Incansável, sempre em movimento, descobriu talentos, aproximou pessoas, produziu pensamento crítico, alavancou autoestimas. Uma análise na agenda do Museu de Arte de Santa Catarina depois do seu desaparecimento comprova que a geração dos anos 1990 ficou órfã. Instaura-se uma penumbra com o fim dos panoramas, retrospectivas, perspectivas, como denominava suas mostras. Com aguçado olhar e muito conhecimento, Laus era generoso, tinha objetivos em favor do Estado. Condutor, força basilar, mostrava-se um curador sem a vaidade visível hoje em profissionais mais preocupados com o currículo pessoal do que com as articulações necessárias ao circuito. Como crítico de arte, assinou cinco textos sobre Schwanke, praticamente um por ano. Publicadas em coluna de jornal, suas reflexões sobre a produção do joinvilense sinalizam o mestre que aponta atributos. “Com o mínimo, Luiz Henrique explora ao máximo as possibilidades das tintas, das cores, dos suportes, conseguindo sempre um resultado novo e surpreendente”, escreve em 1987. Dois anos depois, afirma que, no trabalho do artista “existe a confluência de diversas correntes atuais, o que confere consistência contemporânea. E o que lhe acrescenta maior grandeza é a centelha de invenção e criatividade que repele classificações inúteis por não precisar delas para impor-se”.
Na distância destes 20 anos, é possível falar de uma “época de Laus”, momento com uma fisionomia corajosa, audaz, poética, no qual Schwanke encontrou estímulo para avançar em suas pesquisas. No descompasso cultural de Santa Catarina, havia muito a fazer. Um apoiou o outro. “Temos que ajudar Laus a conseguir que o Masc seja todo pintado de branco, assim nossas seriam obras valorizadas exclusivamente por suas cores e formas. O nosso Masc é maior que o Kunstverein de Berlim, e tem condições parecidas de estrutura”, reflete Schwanke em uma carta que compartilha os anseios dos artistas e expõe a sintonia que os uniu.
Harry Laus
Nasceu em Tijucas em 1922. Militar, escritor, jornalista e crítico de arte, deixou uma obra substancial. Seus livros, traduzidos em outros países, em especial na França, estão no mapeamento da homotextualidade na literatura brasileira. É o autor do importante Indicador Catarinense das Artes Plásticas. Integrou a Associação Brasileira de Críticos de Arte e a Associação Internacional de Críticos de Arte. Morreu em Florianópolis.
Luiz Henrique Schwanke
Nasceu em Joinville em 1951. A produção, com cerca de 5 mil trabalhos, conjuga tradição e experimentação em três momentos distintos: em 1970, produz numa linha de cunho conceitual; em 1980, faz pinturas que apostam no emocional e, em 1990, num percurso mais racional, cria esculturas e perfis de plástico, além de instalações com o uso de luz elétrica. Alinha-se à pop art, ao neoexpressionismo e ao minimalismo. Morreu em Joinville.
* Néri Pedroso é jornalista, presidente do Instituto Schwanke
Publicado no Jornal
A Noticia (Joinville) em 27 de maio de 2012